Grupo pró-Trump lidera ofensiva para afastar servidores federais considerados 'subversivos'

by Marcelo Moreira

Trump comemora início do tarifaço após fazer novas ameaças
Em fevereiro, a funcionária federal Stefanie Anderson sentou-se à mesa da cozinha com o marido e fez perguntas que jamais imaginara ter de enfrentar: seus filhos estavam seguros? Deveriam retirá-los da escola? Deveriam deixar sua casa?
Uma amiga a enviou um link para uma “lista de vigilância DEI” publicada pela American Accountability Foundation (AAF), um grupo de direita com ligações a altos funcionários da administração do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Nela constavam nome, foto, salário e histórico de trabalho de Anderson, além de acusá-la e a outros funcionários federais de impulsionar políticas “radicais” de diversidade, equidade e inclusão no governo.
“Meu coração afundou”, disse Anderson.
A trabalhadora de saúde pública de longa data passou grande parte da carreira nos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), especializando-se em surtos de doenças infecciosas, com atuação na Serra Leoa durante a crise do ebola.
Mais recentemente, ela apoiou programas de prevenção ao HIV. Após sua ficha aparecer no site, seu telefone tocou cerca de 30 vezes por dia durante um mês, com chamadas de números desconhecidos.
Anderson mudou o estilo do cabelo para evitar ser reconhecida, permaneceu dentro de casa, redirecionou pacotes enviados para seu endereço em Atlanta e lembrou os filhos de trancarem as portas e verificarem as câmeras de segurança.
Como mulher negra, disse que a experiência lhe trouxe à mente anúncios de escravizados fugitivos do século 19. “Me fez sentir como uma criminosa num cartaz de procurada.”
Stefanie Anderson, funcionária dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), afastada administrativamente, posa para um retrato em sua residência em Atlanta, Geórgia, EUA, em 17 de junho de 2025.
REUTERS/Alyssa Pointer
Anderson é uma das 175 funcionárias federais, em sua maioria servidoras de carreira, citadas nas “listas de vigilância” publicadas online pela American Accountability Foundation, que deseja que sejam removidas de seus cargos por supostamente promover ideologias liberais.
Muitas são mulheres e pessoas negras com longa trajetória sob administrações republicanas e democratas. A maioria tem pouco ou nenhum perfil público e atuam nos bastidores da administração pública.
A Reuters conversou com 20 pessoas nas listas, todas compartilhando suas histórias pela primeira vez. Algumas reforçaram a segurança em casa ou evitaram locais públicos. Outras excluíram contas em redes sociais ou removeram informações pessoais da internet.
Mais da metade enfrentou ansiedade. Algumas descreveram um silencioso desmoronamento de suas vidas, com depressão e sensação de precisar desaparecer.
Alvos
Com base em documentos legais, registros públicos e entrevistas com mais de três dezenas de fontes, a Reuters traçou a evolução da AAF de uma organização de pesquisa de oposição centrada em Biden a uma ferramenta aguçada da campanha do movimento Trump para erradicar inimigos percebidos.
O alvo da AAF é a força de trabalho federal. Metade das pessoas nas listas da AAF – pelo menos 88 – deixou o governo ou foi colocada em licença administrativa. Algumas foram demitidas no contexto das demissões em massa feitas por Trump. Pelo menos duas, preocupadas com sua segurança, fugiram do país.
Em vez de mirar altos nomeados políticos, as listas da AAF concentram-se principalmente em servidores de carreira que executam a política da administração no poder.
O presidente da AAF, Tom Jones, e seus apoiadores argumentam que muitos desses funcionários têm inclinação liberal e poderiam agir discretamente para minar a agenda de Trump. Portanto, segundo ele, o público merece conhecer suas identidades.
“Eles querem ser burocratas irresponsáveis que trabalham nessas agências e nunca aparecem”, disse ele à Fox News em junho de 2024. “Vamos dizer a vocês quem essas pessoas são e quais são suas motivações.”
Jones não respondeu a uma lista detalhada de perguntas sobre a AAF ou o impacto de suas listas nos servidores civis que visa, mas defendeu seu trabalho em declaração à Reuters.
“É importante que os servidores anti‑Trump saibam que alguém está observando e anotando nomes; defendemos nossa pesquisa e reportagem, e nosso único arrependimento é que mais pessoas nas nossas listas não tenham deixado o governo e passado seus empregos para patriotas que executarão a agenda pela qual o povo americano votou em novembro.”
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REUTERS/Jonathan Ernst
Desde outubro, a AAF publicou três listas de vigilância. A primeira, uma “lista DHS”, nomeou 60 funcionários federais como “alvos” por seu trabalho em políticas de imigração no Departamento de Segurança Interna e no Departamento de Justiça, incluindo quase uma dúzia de juízes de imigração.
Em janeiro, a AAF publicou duas outras: uma identificando “ideólogos políticos” no Departamento de Educação, e outra com funcionários que atuaram em iniciativas de diversidade em outras agências federais.
Cada site traz fotos e dados pessoais retirados de registros públicos e redes sociais, além de alegações de transgressões “subversivas”, “divisivas” ou “de esquerda”, como doações a democratas ou apoio a grupos de auxílio a imigrantes.
Contudo, funcionários federais têm permissão, sob leis federais que proíbem discriminação com base em filiação política, de se envolverem em tal atividade política de forma privada.
Perigo
Ao lançar a primeira lista antes da eleição de 2024, o grupo ajudou a transformar a promessa da campanha de Trump de “limpar o estado profundo” em um banco de dados de nomes e rostos. Após o lançamento da lista do DHS, uma pessoa postou foto de balas no X ao comentar um post da AAF.
Enquanto Trump conduz uma campanha que ele mesmo descreve como de “retribuição”, os servidores públicos nas listas da AAF têm pago o preço. Em Maryland, uma mãe estava numa biblioteca pública com seu filho pequeno quando uma mulher que disse reconhecê-la da lista confrontou-a: “O que você está fazendo é repugnante”, disse a estranha.
No Texas, um homem quebrou o vidro da casa de uma juíza de imigração e chamou-a de “traidora”.
Na Geórgia, a polícia estacionou uma viatura em frente à casa de uma funcionária do CDC por uma semana após ela ser nomeada por trabalhar em iniciativas de ampliação do acesso à saúde em comunidades de baixa renda e minorias.
A ex-juíza federal de imigração Noelle Sharp diz que foi abordada por um estranho em sua casa depois que seu nome apareceu na lista de vigilância do Departamento de Segurança Interna (DHS). Foto pixelada pela Reuters
Reprodução
Para os alvos da AAF, seus sites são catalisadores de danos reputacionais e convites ao assédio. A AAF, no entanto, evita ultrapassar uma linha importante, dizem especialistas em liberdade de expressão: omite endereços residenciais, números de telefone e outros identificadores íntimos associados ao doxxing – a publicação online de informações pessoais com intenção maliciosa.
Por esse padrão, os sites permanecem pouco fora dos limites de potenciais violações criminais de privacidade. Mas especialistas legais afirmam que as listas de vigilância podem dissuadir servidores civis de trabalhos politicamente sensíveis, criando um efeito inibidor no serviço público.
“O que é tão ominoso nesses sites é que eles estão perto da linha do ilegal, mas sem ultrapassar”, afirmou Danielle Citron, professora da Escola de Direito da Universidade da Virgínia especialista em privacidade online.
“Eles são projetados para silenciar, intimidar e inspirar outras pessoas a ferir” quem é citado no site.
A AAF promove seu trabalho como parte de um esforço mais amplo para defender a plataforma “América First” de Trump. Em seus sites, o grupo afirma expor “a verdade por trás das pessoas e grupos que estão minando a democracia americana” e servir como “um recurso de referência para formuladores de políticas e suas equipes.”
Deixa claro seu objetivo aos alvos: “Se você se vê nesta lista e deseja ser removido”, diz nos sites, “por favor nos encaminhe evidências de que você renunciou ou foi demitido.”
À medida que a AAF seleciona funcionários federais por suposto viés político, a administração Trump moveu-se para afrouxar restrições destinadas a manter o partidarismo fora do trabalho governamental.
Em abril, o governo relaxou a aplicação da Lei Hatch, uma lei centenária criada para proteger o serviço civil da pressão política partidária. A mudança permite que funcionários federais apoiem abertamente o presidente em exercício enquanto estão no trabalho, usando bonés “Make America Great Again” em suas mesas, por exemplo.
Evolução
A AAF foi criada em dezembro de 2020, semanas depois de Trump perder a reeleição para Joe Biden. Sua missão inicial, como disse Jones numa entrevista à Fox News em 2021, era “jogar uma grande mão de areia na engrenagem da administração Biden.”
O grupo tem raízes numa rede de organizações sem fins lucrativos alinhadas a Trump lideradas pelo Conservative Partnership Institute, presidido pelo ex‑senador Jim DeMint e por Mark Meadows, que chefiou o gabinete na primeira presidência de Trump.
No ano passado, a AAF recebeu US$ 100 mil da conservadora Heritage Foundation para apoiar seu trabalho, mostram registros públicos. Grande parte de seu financiamento inicial e apoio organizacional veio de grupos alinhados com Trump, incluindo um liderado por Russell Vought, agora diretor de orçamento de Trump, e outro por Stephen Miller, assessor sênior de Trump.
Jones, da AAF, foi conselheiro no Project 2025 da Heritage Foundation, que defende redução da burocracia federal e marginalização dos “guerreiros da cultura woke.”
Heritage, Vought, Miller e a Casa Branca não responderam a perguntas, incluindo sobre vínculos entre oficiais da administração e a AAF ou sobre o impacto das listas em decisões de pessoal.
Mais de 200 mil funcionários federais deixaram o serviço público desde que Trump assumiu o cargo. A administração afirma que aproximadamente 154 mil aceitaram ofertas de saída voluntária, enquanto cerca de 55 mil foram demitidos ou dispensados, segundo o Partnership for Public Service, organização que acompanha tendências na força de trabalho federal.
A Reuters não pôde confirmar se as listas influenciaram decisões de pessoal. O Departamento de Justiça e o de Saúde e Serviços Humanos afirmaram não ter sido influenciados. Os setores de Educação e Segurança Interna não responderam aos pedidos de comentário.
‘Senti que tinha que desaparecer’
Shelby Guillen Dominguez é uma ex-funcionária do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA (HHS)
REUTERS/Julio Cesar Chavez
Shelby Guillen Dominguez, de 34 anos, diz que sentiu uma onda de medo ao ver seu nome na lista de vigilância em fevereiro. O site criticou seu trabalho como especialista em programas de diversidade no Departamento de Saúde e Serviços Humanos.
A plataforma exibiu um vídeo de palestra universitária em que Shelby discutia ampliar oportunidades para estudantes de origens socioeconômicas diversas. O site alegou, sem evidências, que seus comentários “excluíam certas raças.”
“Eu nem mencionei raça”, disse Dominguez em entrevista. “Parecia que estavam me enquadrando como inimiga do Estado.”
A AAF compartilhou suas informações na conta no X, com mais de 23 mil seguidores, acusando-a de remover a palavra “diversidade” de seu título “num triste esforço para manter seu emprego.” Um dos comentários clamou que ela fosse “demitida e investigada.” A troca no título, porém, fazia parte de uma reorganização anunciada um mês antes em todo o departamento.
Dominguez excluiu suas contas nas redes sociais, bloqueou seu relatório de crédito e ativou alertas para monitorar menções de seu nome online. Disse que ficou em casa, fez terapia e recebeu prescrição de medicação para ansiedade e depressão. Em julho, foi oficialmente demitida.
“Sempre foi meu sonho trabalhar para o governo federal”, disse. “Agora tudo está desmoronando.”
Kiana Atkins, servidora federal de longa data, sentiu estresse semelhante ao aparecer na lista em janeiro. “Não conseguia dormir”, disse Atkins, de 46 anos, que trabalhava no National Institutes of Health. “Tinha medo de sair sozinha.”
Atkins ingressou na agência em 2022, após trabalhar para o Census Bureau e a Marinha dos EUA. Seu trabalho focava em reduzir barreiras de emprego para funcionários negros e em orientar estudantes.
Depois de ser nomeada, ela sofreu ansiedade grave e retirou-se de um programa de desenvolvimento profissional. Desativou temporariamente sua conta no LinkedIn e tentou sem sucesso remover seu nome do site da AAF.
Não se sentindo mais segura em casa sozinha, Atkins disse que tomou a difícil decisão de deixar os EUA e viver com familiares na América Central. Aceitou um acordo de saída do governo e mudou-se em fevereiro.
“Eu não me sentia segura”, disse. “Eu senti que tinha que desaparecer.”
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